quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

Sequência dos fatos


Heitor mesmo incomodado com o golpe que se aproximava, teve que se ocupar exclusivamente durante um tempo com a preparação das suas aulas que logo voltariam. Mesmo, que houvesse ameaças de que seria demitido, em virtude de um possível fechamento da escola, ele decidiu preparar as aulas para ocupar a cabeça e não surtar. A grande questão que se levanta, era que quando pensava que talvez não pudesse mais ser um professor é que ele precisaria exercer outra profissão para se manter, mas o que seria? Toda a vida ele trabalhou para ser professor. Nunca pensou numa segunda opção. E nem se preparou para isso.

Estava quase terminando de preparar todas as aulas do ano, quando foi interrompido por um telefonema, era um recado do diretor para que ele fosse imediatamente à escola. Como ele não gostava de contrariar seus lideres, se arrumou rapidamente, pegou o seu chapéu, sem o qual não saía, colocou seu relógio, sua gravata, seu terno bem arrumado e se dirigiu para escola. Quem o visse pela rua, imaginária logo que era pra lá que ele estaria indo. Afinal, ele só vestia um terno completo quando ia à escola. Quando estava em casa de férias, se vestia com roupas mais confortáveis, mas sempre com um bom chapéu para sair à rua.  

O prédio da escola era um autêntico palácio do conhecimento. O prédio era num formato de 'C' nas duas extremidades se encontravam as salas de aulas. Na parte central do prédio estavam a direção e as demais dependências necessárias à uma escola, na parte inferior do pátio entre as duas alas, existia um pátio todo arborizado, na parte inferior deste mesmo pátio existia um segundo pátio que geralmente era usado em dias chuvosos ou dias muito quentes. O prédio de pesquisa, onde funcionava a biblioteca, estava um pouco afastado do prédio central, mas tinha acesso pelo pátio inferior. A decoração era impecável. Nas dependências da direção carpetes coloridos, nas tonalidades de azul e vermelho e nos corredores que davam acesso as salas de aulas eram todos de assoalho de madeira de ipê. O forro igualmente de madeira era totalmente fechado com afrescos, em toda a dependência da escola, menos no pátio. Único lugar mais moderno da escola. Mas não é porque o prédio era antigo que era mal cuidado. Os alunos não podiam reclamar de sujeira. Estudar ali era como entrar em um dos palácios dos contos infantis. A riqueza dos detalhes da decoração era de impressionar.

Dessa vez quando Heitor chegou à escola, sentiu vontade de dar uma passada na sua sala. Ao andar pelos corredores nem percebeu que todos os afrescos haviam recebido uma camada de tinta branca por cima, tamanha era sua alegria de estar numa escola. Passando pela sua sala sentiu-se mal, a sala havia sido reformada. Não havia mais aquelas poltronas coloridas, os livros haviam sido removidos as estantes não estavam mais lá. Agora era um quadro negro e carteiras escolares normais. Aí que ele percebeu que a escola tinha passado por uma reforma. Voltou para o corredor onde havia os afrescos com temas quem passavam por todas as áreas do conhecimento, e percebeu que todas as paredes estavam totalmente brancas.

A revolta já surgia no seu pensamento. Além da sua sala de aula ter sido alterada sem o consentimento dele, a escola inteira estava toda branca, sem nenhum afresco que os alunos e os professores tanto gostavam. E como assim removem os livros da sua sala sem me consultar? Sem perguntar o que eu acho melhor? Heitor acelerou os passos parar chegar logo a sala do diretor.

O diretor Tibúrcio não era um dos seres mais gentis, serenos. Era até educado, mas sua personalidade dominante era rudimentar, um pequeno cavalo, e quando digo pequeno é porque era pequeno mesmo. Se tiver um metro e meio já é bastante. Sempre está vestido com terno escuro, colete e em virtude do ar condicionado de sua sala estar sempre muito frio, usava gorro e luvas. Manias que ninguém entendia.

Só que desta fez, quando Heitor entrou na sala também pode perceber que também ali as coisas não estavam do mesmo jeito de antes. Isso o estranhou, mas nem tanto como a sala de aula dele. Quando Heitor entrou na sala do Tibúrcio, ele estava aos prantos. Sem entender muito Heitor entrou devagar e manteve-se em silêncio. A sala que sempre estava bem organizada agora representava um perfeito caos. Nada estava no lugar. Tibúrcio deu um pulo de sua cadeira e foi logo vociferando para cima de Heitor.
- Heitor, você não pode continuar conosco.
Sem entender nada, Heitor continuou olhando para Tibúrcio. Como aquele homem que aparentava estar aos prantos conseguiu sair do pranto para o choro de raiva e gritar para cima de Heitor? – Tibúrcio acalmou-se um pouco e continuou a falar.
- Você não pode ficar aqui. Peço que imediatamente retire tudo que é teu dessa escola. A partir desse ano, não haverá mais filosofia para os alunos. Essa matéria é considerada abusiva, um falso conhecimento para os jovens.
- Como assim? Que história é essa?
- Isso mesmo que você ouviu. E não queira discutir comigo. Devo cumprir as minhas obrigações. Devo obedecer aos meus superiores. Você é uma ameaça!
Aquelas palavras foram ouvidas por Heitor, que estava agora em estado de choque. Como assim? Os alunos não podem mais estudar filosofia? A filosofia é um mal? É um falso conhecimento? Isso não descia.
- Eu não posso estar ouvindo isso – falou Heitor inconformado.
- Está e quero que retire todas as suas coisas hoje mesmo daqui, o que você não tirar será jogado fora pela manhã.
- Mas como assim? De onde veio essa notícia?
- De onde você imaginava que viria mais cedo ou mais tarde – falou Tibúrcio deixando de falar como um ditador para falar como um amigo – Bem que você tinha comentado, até parece que estava percebendo o que estava acontecendo. Olha essa escola, está totalmente esbranquiçada, não tem cor, não tem vida, não tem história. Uma escola sem história é uma escola sem vida. Tivemos que apagar tudo. Nada podia ficar como era. As salas de aulas tiveram que ser padronizadas, agora para os professores que ficarem terão que ensinar os alunos com lousa e giz, nada a mais. Imagine, terão que ensinar física, química sem utilizar qualquer outro método didático, a não ser lousa e giz.
- Calma, como assim?
- Passaram aqui, e recolheram tudo, projetores, livros, tudo. Fizeram uma fogueira e pela manhã só tinha cinza no pátio. Eu cheguei aqui na escola para organizar as fixas dos alunos e aí percebi que tudo tinha sido perdido. A biblioteca está fazia. Mais de 5.000 volumes foram queimados. Sinceramente não sei o que dizer para os pais aqui há quinze dias, quando as aulas voltarem. Semana que vem todos os professores estão de volta. E vão descobrir que não temos mais estrutura para uma grande escola e para um ensino de qualidade.
- Foram eles que fizeram isso?
- Sim. Recebi este memorando por um juiz esta manhã – disse Tibúrcio entregando a Heitor uma folha que dizia. “A partir deste dia, está proibido o ensino de filosofia. O presente governo vê a filosofia como uma ferramenta de rebeldia e revolução para o emburrecimento dos estudantes. Ferramenta de alienação para os revoltos da nossa sociedade. Desse modo, todos os professores de filosofia deverão ser demitidos e esta profissão deverá ser extirpada da nossa sociedade. A filosofia deve ser considerada como profissão de marginais”
Heitor terminou de ler aquele memorando, sem acreditar no que estava vivendo, sentiu vontade de acordar. Aquilo só poderia ser um pesadelo. Toda a sua vida seria jogada no lixo, seria agora um ninguém, quem ele seria agora? Um profundo desespero tomava conta dele. Caiu numa poltrona sem reação. Tibúrcio ao contrário andava de um lado para o outro, estava completamente sem chão, não sabia o que fazer. Com muito custo Heitor conseguiu soltar algumas palavras.
- O que eu vou fazer agora? Não tenho mais trabalho...
Tibúrcio ouviu, e preferiu ficar olhando para a janela em direção ao pátio do que olhar para Heitor. A situação não era das melhores. Ele estava com o um professor que tinha que ser demitido, e que a cima de tudo era seu amigo. Heitor era um excelente professor. Todos os professores o amavam, os alunos gostavam de participar das suas aulas. Todos gostavam muito do Heitor. Heitor não era apenas mais um professor, Heitor era um exemplo.
- Agora você tem que ser herói Heitor.
- O que você está querendo dizer. – falou Heitor como que anestesiado pelo que acabava de ouvir.
- Eu tenho que obedecer às ordens. Você não pode mais lecionar. Você está proibido. – medindo palavras, voltando-se para Heitor – Sinceramente tenho medo do que possa vir a te acontecer. Sugiro que você arrume logo outro emprego, comece a fazer outra coisa.
- Mas o que pode vir acontecer comigo?
- Não espere coisas boas de quem destrói escolas e queima livros. – disse Tibúrcio – Aqui não é mais um lugar seguro pra você.
- Mas eu tenho uma vida aqui, tenho as minhas coisas, a minha casa. Tenho tudo aqui.
- Pegue as suas coisas e fuja daqui. Eu tenho uma casa no interior, você pode se recolher lá até as coisas melhorarem por aqui. Faça o seguinte saía dessa cidade. Saía de São Paulo. Por favor. Será uma honra te receber de volta nesta escola assim que essa situação melhorar.
Heitor estava tonto, acabou por concordar instintivamente, sem perceber o que fazia. O seu sonho, o seu mundo estava agora completamente destruído. Deu um até logo com a cabeça, sem muita reação. Tibúrcio entregou a chave da casa de campo juntamente com o endereço, que Heitor colocou no bolso sem perceber. Saiu foi até a sua sala, pegou todas as suas coisas colocou dentro de uma caixa e saiu da escola.
O que ele sentia? Medo, insegurança, revolta, vontade de gritar, de lutar, vontade de morrer. Heitor estava num estado de morte, num estado de nadificação. Tudo aquilo que ele era agora não era mais.



sexta-feira, 1 de janeiro de 2016

O começo de tudo


Inicio de ano sempre parece a mesma coisa, só que não é. Não naquele ano, o professor Heitor sabia que estava diante de um golpe e bem que tentou fazer seus contatos se rebelarem, só que era mais cômodo ficar onde estavam do que se rebelar contra um governo que mantinha as aparências. O que para seus amigos era real, para Heitor não passava de pura ilusão. E por mais que Heitor tentasse transmitir a verdade, ele era considerado um louco. Pra falar a verdade Heitor ficava extremamente  incomodado de como as pessoas poderiam ficar tão cegas, ao ponto de não perceberem o desastre que se levantava na frente de todos. Chegou a conversar com outros professores, só que os mesmos não se interessavam pelo assunto ou apenas estavam mais preocupados em pagar suas contas. De fato, pagar contas era um desafio bem difícil de conseguir. 

Meios para favorecer a ilusão não lhe faltavam. As pessoas tinham pequenas caixas mágicas, que faziam de tudo, de tele-transporte até multiplicação de amigos. Só não multiplicava renda de quem a possuía. De fato, era um mundo estranho. Bem estranho. Só pra você ter uma noção de como eram aquelas pessoas que viviam na mesma realidade de Heitor, basta você saber que quase ninguém mantinha relações pessoais fisicamente, as pessoas se relacionavam através de suas caixas mágicas. Era praticamente inviável pensar em viver sem aquelas caixinhas. Só que o que ninguém esperava é que aquelas caixinhas iriam se voltar contra seus donos.   

Poderia chamar de a revolta das caixinhas. Mas revolta não se aplica. Sabe por quê? Uma revolta é percebível por todos aqueles que são afetados. Por isso é um golpe. Sim, um golpe, o golpe das caixinhas. As pessoas daquele lugar pensavam que o governo não manipulava as caixinhas. Mas o governo manipulava as caixinhas ao ponto de muitos se quer imaginavam que aquilo era possível. Por isso ninguém desconfiava das caixinhas. As caixinhas eram uma espécie de transmissores de informações para o governo. Tudo o que você usava nas caixinhas era passado para o governo e o pior que era passado inclusive os elementos do ambiente onde elas estavam mesmo que você apenas tenha apenas entrado numa sala. Sem você saber as caixinhas tinha passado todas as informações para o governo do que havia naquela sala. Se aquelas caixinhas faziam isso, não seria mistério pra ninguém que todas as conversas realizadas próximo a uma caixinha eram igualmente transmitidas ao governo. 

Agora você pode se perguntar. Como Heitor descobriu isso? Ele não descobriu, ele deduziu. Heitor tinha uma caixinha, e a dele que não era das mais novas, já mostrava que tinha muitos livros em casa. Depois que ele percebeu isso, ele desligou o sinal dela como prevenção e nunca mais deixou alguém entrar com caixinha na biblioteca dele. Por este fato ele até evitava convidar pessoas para sua casa.

Heitor percebeu também que o golpe que se armava era contra o conhecimento e ele começou a estranhar quando percebeu que o curso em que era formado foi simplesmente cancelado em várias universidades. A desculpa do governo era falta de estudantes. Isso era praticamente inaceitável. Só por ele nos últimos anos passaram-se mais de três mil estudantes e destes ao menos 50 haviam despertado interesse em continuar os estudos numa faculdade. Só com aqueles que ele havia iniciado já daria uma turma. A conta não fechava, ele não era o único professor de filosofia. Seus amigos professores relatavam a mesma coisa. Porém, estes não usavam a razão como ele usava. Desde a faculdade ele já se destacava do restante da turma, por ser super dotado no uso da razão.
  
Outro fator que o deixou bastante incomodado foi o caso do fechamento das bibliotecas, as pessoas poderiam ver seus livros, seus textos através das suas caixinhas. Ele não queria isso. Heitor sempre gostou dos livros fisicamente, por isso tinha uma biblioteca riquíssima particular na sua casa. Ele ficou muito inconformado com essa realidade do fechamento das bibliotecas, mas as pessoas simplesmente aceitaram porque afinal, ninguém ia mais às bibliotecas, era tudo feito pelas caixinhas. Heitor percebeu que havia algo errado, quando durante uma aula pediu para um aluno encontrar um texto famoso de Kant na sua caixinha e o texto não foi encontrado. Naquela aula, ele recorreu ao livro mesmo, afinal a pesquisa para o aluno era apenas um recurso didático. Mas ao chegar a casa foi pesquisar na sua caixinha, que não era das mais atuais para ver se encontrava. Não encontrou. Passou a procurar outros textos, como de Platão, Aristóteles, Agostinho, Sêneca, Descartes, e simplesmente não encontrou nenhum.


Ele foi falar com outras pessoas que tinham caixinhas mais novas para ver se encontrava, porém, o resultado foi o mesmo. É de fato, os conteúdos de filosofia estavam ficando escassos. É claro que as pessoas não saberiam nem sequer o que é filosofia. Foi falar sobre este problema com outros professores, que não matinha tanto contato, aí ele pode descobrir que muitos já não atuavam mais como professores de filosofia, ou tinham mudado o ramo de pesquisa para matemática ou tinham virado faxineiros, lixeiros, vendedores, desenhistas, escritores. E muitos bons professores tinham migrado de ramo de atuação. Aí foi só questão de tempo. Heitor percebeu que ele era o único que estava percebendo que as coisas estavam saindo dos eixos, que um golpe estava se levantando e que ninguém estava percebendo isso.